quinta-feira, 6 de julho de 2017

um poema ou um reclame - Marcelo Labes

calma, eu lhes peço calma
porque de nada adiantaria
um poema escrito lentamente
ser lido agora com pressa.

façamos um trato,
um pacto, uma aliança: este é um poema para
ser lido com calma enquanto a noite chega,
enquanto a manhã se aproxima, enquanto o dia

termina num passo de dança.

em fim de tarde, um risco rosa no céu
era um avião de outono-inverno
vestindo sua calda mais poderosa

e eu ali, balançando no ônibus
das seis da tarde e pensando
nas cores mais poderosas

pensando em tudo que nos roubaram
sempre que puderam. corrijo:
pensando em tudo que me roubaram

das punhetinhas rápidas e comprimidas
às noites de trago e cocaína
trocadas por orações ao anjinho protetor

ou a um deus-sem-nome
na oração da serenidade:
toda idade é idade de arrepender-se.

roubaram-me as tardes vãs de domingo
que pouco ou nada valiam no mercado-negro
de propriedades que assaltamos em pensamento

em troca de cheque especial
e empréstimos impensados
é que ganhamos salário

ou nada disso teria valido a pena
chegar aos trinta e dois anos e o melhor
a oferecer nunca passar de um poema

ou dois: seja isso pretensão ou
derrotismo, não nos interessa
otavianos que discutimos se

o poema ou se a poesia
como se tudo não passasse nunca
de uma soma interminável de palavras.

num b.o. imaginado listamos:

o sonho que sonhamos acordados
enquando digeríamos a esquerda
neoliberal latino-americana;
o desespero sebastianista que já
sabe que o messias não vai voltar
que o rei escondeu as armas e o trono
que deus morreu faz tempo
e que estamos todos sozinhos;
a saudade que dá sempre que lembramos
da bicicleta vermelhamarela, em vão:
não caberíamos mais nela
com esse tamanho
com o peso desses anos todos
tentando acertar o passo
para melhorar de vida;
a vida em si com tudo de vida
que na vida há;
este trocadilho acima,
enfadonho.

acostumamo-nos:

com o aquecimento global
com o fascismo com o racismo
com os aumentos de passagem
de ladroagem de traquinagem
com os discos antigos de
chico buarque com a morte
de belchior acostumamo-nos
com a fuga de jango com o
discurso liberal de mujica
logo nós
logo nós que esperávamos
mais desta e de todas as outras
vidas: as que vivemos e as
que imaginamos agora aqui
acostumados
acostumados
acostumados
e volta e meia reclamando.

e antes que a calma se canse:

não há liberdade que não seja a morte
isso está dito nos seriados netflix
nas teorias da conspiração
nos chemtrails, no glutamato
monossódico,
na direita e na esquerda
venezuelanas,
nos brasiguaios que tentam
invadir a capital do paraguai.

roubaram, os sem-vergonha alguma:

nossa esperança de que o homem
poderá visitar a lua pagando em prestações
nossa esperança de que o ano findará
sem mais mortes de inocentes
nossa esperança de que o amor nos salvará
de todas as dores, de todas as perdas
e a tudo isso nos acostumamos

mas é difícil acreditar que nos roubaram
o inverno, que anteciparam a primavera
isso já é demais e é preciso procurar os
órgãos oficiais para que alguma coisa

seja feita a respeito.



Marcelo Labes é poeta nascido em 1984 em Blumenau-SC. Autor de Falações (EdiFurb, 2008), Porque sim não é resposta (Antítese/Hemisfério Sul2015), O filho da empregada (Antítese/Hemisfério Sul 2016) e Trapaça (Oito e Meio, 2016). Participa da mostra Poesia Agora (edição carioca). Publica no blog http://mmlabes.blogspot.com e mantém a revista O poema do poeta (http://opoemadopoeta.wordpress.com), onde publica originais manuscritos de autores vivos e mortos, do Brasil e do exterior.


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