*Por
Alexandra Vieira de Almeida
Ao
ler o esplendoroso e arrebatador romance de Alberto Lins Caldas, Veneza, recordo-me da imagem da Terra
como paraíso, o Éden de Leibniz, com seu dizer de que habitamos o melhor dos
mundos possíveis. Alberto Lins Caldas vai além, revelando um mundo tenso,
denso, em que convivem a beleza paradisíaca da cidade do coração do narrador-personagem
Pierre Bourdon, Veneza, com suas águas, cheiros, alimentos apetitosos, numa
revelação sinestésica, em que os sentidos aguçados na narração nos levam ao
corpo saboroso desta cidade ímpar, com o inferno da miséria dos seres, os
desvalidos, os viciosos, e a melancolia do próprio Pierre que tenta captar a
imagem de sonho/pesadelo da realidade. No conto de Voltaire, “Cândido ou o
otimismo”, em que o filósofo-escritor francês ironiza Leibniz, o personagem
passa por todos os infortúnios e mesmo assim é otimista. O autor deste belo Veneza, mostra-nos um personagem que
passa por vários problemas devido à sua paixão por mulheres casadas e, por
isto, caminha para a iminência da morte: “Livros e mulheres foram sempre o meu
fraco...” Logo no primeiro livro do romance por ora aqui estudado, a narrativa
se constrói como uma preparação para a morte, como podemos encontrar na
história dos grandes filósofos: “...e nesses extremos se delineia a ironia da
minha vida e a razão da minha morte”.
De
um lado temos, no início do livro, a vivacidade de um personagem que busca o
prazer a qualquer custo. A poeticidade e lirismo com que o narrador-personagem
narra a beleza idílica e a exaltação do local vista do interior do quarto em
Veneza se alongando para as imagens vistas pela janela, acrescentando cores,
como se estivesse revelando uma bela pintura, reproduzem a máxima horaciana “Ut
pictura poesis” (A poesia como pintura). A força descritiva de Caldas, com
constantes adjetivações e enumerações, só reforça esta realidade icônica de sua
obra. Esta realidade pictórica de sua escrita é uma estratégia narrativa para
reter a memória, pois sua escrita é uma rememoração dos momentos paradisíacos e
infernais da história de Pierre Bourdon. Se desde a apresentação com o
achamento de um Códice onde estaria esta narrativa encontrada no lixo pelo
editor-autor, temos a falta de precisão, o romance em questão fruto deste
Códice impreciso, revela um paradoxo rico de estética. A constante adjetivação
do narrador-personagem, que não sabemos se ele é real, é uma forma de
acobertamento também da falta de precisão que a própria memória pode levar, já
que ela, segundo Derrida, em seu livro Farmácia
de Platão, seria exterior à escrita ao analisar uma passagem de Fedro, de Platão; pois a escrita é pharmakón, tem seu remédio, mas também
traz o veneno. O papel do editor-autor foi ordenar, colocar ordem no que é
caótico do próprio Códice, num processo de organização composicional, inserindo
epígrafes em cada um dos sete livros, que por sua vez, são divididos em três
capítulos.
Ao longo do romance, temos um
amadurecimento de Pierre Bourdon, em que a bile negra - a melancolia - se
manifesta com o passar dos anos, num processo de autoconhecimento e
autorreflexão, cujo primeiro motor é o espelho da ilha em que ele se mira. Ao
ver aquelas pessoas paradas na ilha, após a viagem de navio com seu fiel
criado, o Mouro, compara tudo num amálgama só (pessoas, árvores, animais). É
neste espelho da ilha, que Pierre observa o rosto do mundo mais de perto e a
falta do espaço interno, o lar, o joga para o mundo, percebendo os contrastes
dele, a vida-morte, dor-prazer, miséria-riqueza, revelando a intensa compaixão
dele pelas coisas do mundo, levando-o a partir daí a seus delírios e
melancolia. O quarto de Pierre é o mundo, em sua miniatura-metonímia, a cidade
de Veneza, ao invés do quarto minúsculo do autor francês Xavier de Maistre, com
sua Viagem ao redor de meu quarto,
com suas constantes digressões, que influenciaram Machado de Assis. O espaço do
externo inebria Pierre com suas sensações, desde o mais belo ao mais
repugnante. Em Pierre, o amadurecimento no ato da escrita revela um narrador
excepcional: “...e que no tempo não entendia em sua extensão, mas hoje ecoa bem
fundo e com plena verdade em todo o meu ser...”
O Mouro, o que dizermos do criado fiel
amigo de Pierre Bourdon? Ele é o equilíbrio em meio ao desequilíbrio, o
silêncio em meio ao discurso e livros do amo, a cura em meio à doença, a
realidade em meio ao delírio e loucura de Pierre, Sancho Pança e Dom Quixote.
Em meio à melancolia do narrador-personagem, o Mouro traz o riso. Em meio aos
unguentos, ervas medicinais, banhos, Pierre vai estendendo sua vida num
cobertor de vida e morte. Pierre tem o poder de ironizar-se, é sarcástico
consigo mesmo, culpabiliza-se num mundo gestado pelo Mal, como ele chama. Se o
universo está longe do bem, com a fome, o abandono, a morte, o sofrimento, a
velhice, a humilhação, a espera, como explicar o problema do Mal e Deus, uma
questão dos filósofos? Guimarães Rosa mostrou, em Grande sertão: veredas, este poder demoníaco na natureza, nas
coisas. E como escapar dele? Pierre num processo de esvaziamento de sentido, de
Deus, diz: “Pela primeira vez não senti Deus nem neles nem mais em mim”.
Pierre não entende aquilo que não diz
respeito à sua vivência. Por isto, para ele, escrever é rememorar, uma luta
contra o esquecimento e a própria morte. Por isto ele fala antes de morrer:
“...recordar antes de esquecer”. No seu viés mimético, ele deve deixar algumas
coisas na obscuridade, não quer saber tudo, aquilo que não lhe apraz ou condiz
com seu elemento. Ele conversa consigo mesmo e com o leitor no seu processo de
escrita, revelando seu livro como um grande monólogo narrativo com intensa dose
de dramaticidade, beirando ao trágico, sem ter, paradoxalmente, diálogos
diretos entre personagens: “Por que? então querer me enfronhar em imprestáveis
minúcias, cansando minha cabeça, sem nenhuma utilidade, sequer servindo, como
agora, para a revivescência dessa escrita.”
Veneza, de Alberto Lins Caldas (Editora Penalux, 2017) |
A imagem de Pierre é como a própria
Veneza, um abismo, um mistério, um segredo, como as águas, o mar. Ele é sem
chão, sem firmeza, desconhecido para ele mesmo. A água seria este batismo de
esquecimento? O caos em meio ao ordenamento da escrita? Na viagem no mar, no
navio, Pierre alcança este vazio. O vazio do quadro branco e das cores
carregadas do início do livro. Este vazio é o riso do Mouro. Se Pierre é
carregado de linguagem, livros, o Mouro é a não-linguagem, o esquecimento, o
vazio, o silêncio, as duas faces, paradoxalmente de Pierre Bourdon e da sua
escrita: “Todo mundo é um ator” (Mundus
universus exercet histrioniam). O prazer da vida leva o narrador-personagem
ao prazer e gosto amargo da tinta. Enquanto o Mouro tem medo do mar, das águas
profundas, Pierre é todo água, flutuante e conflitante. Ele se adensa na água.
Pierre é caracterizado como vírgulas, pontos e interrogações. O Mouro é
reticente. No mar, Pierre poderia morrer, mas o Mouro não teria o corpo da
mulher. O Mouro vê a fatalidade iminente e Pierre provoca a Desdita por nada,
brinca com a Sorte, o Destino. Isto demonstra no romance de Caldas uma
dramaticidade plástica, icônica. Ele cria no mundo uma intimidade de sentidos.
Ele utiliza uma linguagem visual, dos olhos, mas que não deixa de ter um
processo analítico para as mentes.
Se Pierre faz do externo um lar, o
interior; o Mouro faz do lar um mundo como vemos na banheira no final da
narrativa. O narrador-personagem faz questão de mostrar as diferenciações dos
ambientes, dá destaque a cada parte, enfatizando marcas em cada descrição de
sua narrativa como num caleidoscópio colorido e multifacetado, como podemos ver
no contraste entre o branco e o negro no estábulo dos escravos e das múltiplas
cores na fazenda, revelando no ambiente a tensão que ocorreria depois entre ele
e o estranho desconhecido. Há uma grande tensão na linguagem, no romance de
Caldas. Aqui de novo, no duelo, há a iminência da morte. Esta é o fim da
memória e do tempo, da escrita, portanto. O esquecimento é o processo de
rasura, de descascamento do ser. Pierre é um ser que hesita, se tensiona. As
impressões do narrador se misturam aos delírios e o leitor se pergunta – isto é
real ou delirante?
Veneza, Itália, vista de cima (2015) |
O Mouro é a consciência de Pierre. Ele sempre o está advertindo. É um dique em meio ao transbordamento de Pierre, que vê Veneza como um ser vivo, pronta a ser devorada, num verdadeiro devaneio-degustação da cidade – o corpo de Veneza – como uma mulher, numa verdadeira relação entre amante e amada. A sua real amada, por assim dizer. Numa topografia corporal, Pierre diz: “As tão drásticas mudanças no meu corpo e na minha alma são reflexos dessa cidade...” E o mouro o tira de seus devaneios. No final da vida, em meio à chuva, paradoxalmente, Pierre ri, dá uma “gargalhada sem fim”. Neste sentido, ele incorpora o Mouro. A luz e a sombra, os opostos convivem no final. Após ver a putrefação do irmão mais velho, Pierre se depara com a estátua de um anjo, mostrando a convivência entre o belo e o feio, o nobre e o asco, o alto e o baixo.
Portanto, temos em
Alberto Lins Caldas, um estilo lírico e ácido ao mesmo tempo. E o grande
mistério, no final, a grande questão é a própria vida nas muitas faces do ser.
Pierre é um ser flutuante, como as águas de Veneza, que transmite admiração e
maravilhamento, mas que reflete também a dura realidade, como as pistas que o
narrador nos dá no início do livro, quando descreve suas águas cheias de peixes
mortos e fezes, distante do lirismo dos poetas. Se o narrador revela a ótica da
perversidade, da crueldade, também temos a cura, pois pensar sobre este estágio
de desequilíbrio, de doença, é uma forma de equilíbrio, mostrando a forte
dramaticidade desta relação. Assim, fica a questão de Alberto Lins Caldas, a
linguagem é máscara ou revelação? A resposta cabe ao leitor inteligente como o
narrador assim o quer.
“Veneza”, romance. Autor: Alberto Lins Caldas. Editora Penalux, 184 págs.,
R$ 40,00, 2017.
Disponível
em:
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Alberto
Lins Caldas é pernambucano de Gravatá, onde
nasceu em 1957. Colabora em jornais do Recife (Diário de Pernambuco, Jornal do
Commercio e Diário da Manhã) com artigos de critica literária e poesia.
Fundador do grupo informal Poetas da Rua do Imperador. Cursou Historia e
Arqueologia na UFPE. Ensaísta proustiano e poeta. Autor dos contos de Babel (2001), dos romances Senhor Krauze (2009) e Veneza (2017), e dos livros de poemas Minos (2011), De corpo presente (2013), A perversa migração das baleias azuis (2016) e A pequena
metafísica dos babuinos de Gibraltar (2017).
*Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista,
cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas
em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu
terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios
literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o
Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato:
alealmeida76@gmail.com
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