CROQUI
– Rebentar não
adotou uma estrutura linear/tradicional, onde o mote principal seria
“prender o leitor pela curiosidade de saber se a mãe acharia ou
não o filho”. Logo no início é dado o que seria tido como “o
fim da história”: Ângela desiste de procurar Felipe, depois de
longos anos de devoção exclusiva à sua procura. Como se deu a
decisão de adotar esse ótimo modelo?
RAFAEL
GALLO – Veio
justamente disso que você falou, de não querer a história
direcionada para o suspense, nem por mim nem pelo olhar dos leitores.
Histórias de desaparecimento costumam ter essa abordagem e, desde
que comecei a pensar no Rebentar,
sabia que ele não seria sobre a expectativa do reencontro ou não.
Para mim, a história é sobre Ângela, a mãe, sobre o processo
íntimo – e prático – dela, de descontruir e reconstruir o
vínculo com esse filho, já perdido há anos. Não queria que os
leitores se distraíssem desse “coração” da história, por
conta de uma expectativa que não deveria estar ali. Por isso, a
pergunta é eliminada de imediato, como se o livro logo dissesse:
“Não, Felipe não será reencontrado; agora podemos falar do que
importa aqui?”
CROQUI
– Houve um
processo de pesquisa para a composição do romance? Caso sim, como
foi essa experiência?
RAFAEL
GALLO – Sim,
precisei pesquisar bastante, pois não conhecia praticamente nada do
universo de crianças desaparecidas. Comecei pelas leituras - tanto
de ficções quanto de materiais jornalísticos ou acadêmicos - mas
o mais importante, sem dúvida, foram as conversas que tive com mães
de filhos desaparecidos. O livro não teria sido o mesmo sem o que
aprendi delas, devo muito, muito mesmo, a essa generosidade.
CROQUI
– Discorra um
pouco sobre a convenção do “amor incondicional de mãe” e o que
isso carrega consigo.
RAFAEL
GALLO – O
termo “amor incondicional” me incomoda um pouco. Não lembro se
algo assim é mencionado diretamente no livro, mas provavelmente é
uma ideia que permeia a história. Não vejo o amor como algo
desligado de condições, algo gratuito e sem razão de ser ou de
permanecer. Talvez alguns pais e mães sintam isso, que chamam de
amor incondicional, logo ao nascimento de seus bebês, até por uma
questão de química do corpo: a preservação da espécie e seus
recursos fisiológicos (bom, nesse caso, continua havendo uma
condição, biológica). Por outro lado, já ouvi de muitas mães que
a vinculação com o bebê não aconteceu de imediato, parecia até
estranho não ter esse “amor” (quando é algo normal, a pressão
sobre as mães é que é doentia). Para mim, o amor precisa ser
tecido fio a fio, construído tijolo a tijolo, não tratado como algo
que cai do céu. Aliás, acho que grande parte de sua força e beleza
vêm daí, de não ser gratuito, como se fosse uma mágica alheia a
quem ama ou é amado. O amor é o que se faz dele, o tempo todo. Tem
de ser algo “esculpido” pelos amados e amantes, erigido e mantido
de mãos dadas. Acredito em amores que ativamente fazem jus a si
mesmos, que se formam por dedicação e cuidado, por entregas e
compartilhamentos, por exigências também. Pelo zelo com as
condições em que são cultivados, não por considerarem que essas
condições são irrelevantes. E, talvez, Rebentar
carregue essa ideia. Algo como “ainda que você seja meu filho,
para te amar eu preciso te conhecer, preciso saber quem você é”.
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Foto: Nádia Maria / Capa: Frede Tizzot |
CROQUI
– Obviamente que
só quem passou ou passa por uma dessas situações sabe a dor real,
mas na sua visão, é pior ter um filho desaparecido ou, tendo-o ao
lado, perdê-lo para a morte?
RAFAEL
GALLO – Eu
não poderia mesmo dizer, talvez só quem passou por algo assim
possa. Bom, acho que nem mesmo quem passou poderia apontar uma delas
como pior do que a outra. Mas o desaparecimento tem algumas
singularidades muito dolorosas, como o fato de a ausência ser tão
completa quanto a da morte (você não tem nada mais da pessoa
consigo, nenhuma possibilidade de contato), porém sem o fechamento
que a morte, ao menos, dispõe. Depois que alguém próximo se foi
pelo falecimento, só resta seguir adiante, de alguma forma. No
desaparecimento, esse “depois” não se forma, nunca chega. Você
pode ficar para sempre no “antes”, na iminência de a pessoa ser
reencontrada. Quando não é (e isso acontece, de certa forma, todos
os dias), o luto se renova, ele não tem fim, não tem um ponto de
repouso. Você sequer pode chorar a perda por completo, porque ela
sempre ameaça deixar de ser perda. É uma ferida que nunca chega ao
período de cicatrização.
CROQUI
– Um dos pontos
fortes tratados pelo livro é o de como a condição social colabora
para um desaparecimento ser tratado como um caso, ou como só mais um
número nas estatísticas, configurado no exemplo dos personagens
Felipe e Mateus. Esse realmente foi um dos debates que você também
quis levantar?
RAFAEL
GALLO – Sim.
No caso desses dois desaparecimentos, quis colocar em jogo como
pessoas (crianças ou adultos) têm tratamentos completamente
diferentes, dependendo da classe social a que pertencem. Isso não é
só no desaparecimento, é em tudo. Especialmente em um país tão
desigual quanto o nosso, se você tem muito dinheiro vive em um
“mundo” absolutamente discrepante de quem carece de poder. Nem as
leis funcionam da mesma maneira. No caso de desaparecidos, isso se
mantém, acentua-se: uma criança de classe média-alta desaparecida
se torna notícia, comove o país, mobiliza a todos; crianças da
periferia desaparecem e nada é dito. São dezenas de milhares de
desaparecidos por ano no Brasil, de quantos a gente ouve falar?
A
cena em que a mãe do Mateus é rechaçada e, depois, ameaçada pelos
policiais, somente por exigir que seu filho seja buscado devidamente,
não é algo que inventei. Repete-se com muitas mães, especialmente
as negras e da periferia. Aquela própria ideia de que é preciso
esperar 24 horas para começar as buscas, tão difundida, é falsa;
não há nada disso na lei, é só uma praxe. Mas deixe o filho de
alguém rico e famoso desaparecer, para vermos se os policias vão
dizer a esses pais que têm de esperar tudo isso para começarem a se
mexer. Nada disso, em menos de cinco minutos já teremos helicópteros
sobrevoando a cidade, acompanhados pelas câmeras de TV, apelos em
toda mídia, etc. Enquanto isso, mães da periferia têm de escutar
que suas filhas pré-adolescentes desaparecidas devem estar em algum
motel, escondidas, que seus filhos meninos devem estar metidos com o
tráfico, e irem embora caladas para não receberem ameaças de
prisão por desacato a autoridade.
CROQUI
– Achamos a
inclusão da expressão “rebentar” em vários momentos do livro
algo bem interessante. O que há de metáfora, de concreto e como
surgiu essa escolha do título do seu livro?
RAFAEL
GALLO – Há
algumas palavras e imagens que quis repetir ao longo do livro,
usando-os como uma espécie de “material temático”, algo típico
da música. Menções a espelhos, às dores nos joelhos de Ângela,
ao mar e a outros elementos são retomadas a todo momento. A palavra
“rebentar” foi uma das primeiras que me surgiu, desde os
rascunhos. Ainda não tinha o título bem definido, mas já me
atraíam seus sentidos de “rebento” (ligado ao filho) e de
“rompimento”, especialmente em relação ao processo de Ângela,
de romper com a condição de “mãe de filho desaparecido”.
Enquanto pensava em tudo isso e tentava encontrar os outros elementos
da história, me veio à cabeça a imagem (como se visse a cena de um
filme) dessa mulher diante do mar, em algum canto isolado, meditando
sobre sua vida. Então, pensei também no rebentar das ondas que ela
via. O título, assim como a personagem e a introdução do livro, se
delinearam melhor a partir dessa imagem primordial.
CROQUI
– O quarto
intacto por mais de 30 anos e sua transformação simbólica numa
espécie de altar, onde o tempo é congelado no intuito de conservar
toda lembrança da criança desaparecida, e o recurso do
envelhecimento digital com base na antiga foto. Como, na sua visão,
se dá esse paralelo, bem como suas consequências na vida dos pais?
RAFAEL
GALLO – A
história do quarto foi baseada em uma lembrança, mais antiga, de
certa matéria que vi em uma revista (uma pena não tê-la guardado),
falando sobre pais que perderam seus filhos jovens, focada
especialmente nos quartos deles, nessa manutenção simbólica dos
pertences dos mortos. As fotos eram de cortar o coração: estavam
todos arrumados como se a criança ou adolescente ainda vivesse ali,
estivesse prestes a voltar. Além disso, os pais instalavam certos
marcadores de tempo paralisados: relógios ou calendários parados na
hora ou dia em que o filho se foi, coisas assim. Um dos quartos, não
me esqueço disso, tinha uma tabela de basquetebol, na qual o pai
instalou uma haste e prendou nela a bola, criando o efeito de essa
bola estar parada no ar, para sempre prestes a cair no cesto.
A
história do envelhecimento digital também foi curiosa, porque eu já
tinha a ideia de utilizá-lo na história, mas não pensava em
proporcioná-lo tanto peso. Seria apenas mais uma das coisas pelas
quais Ângela tem de passar. Só que em uma das entrevistas que fiz,
com a mãe de uma garota desaparecida, ela me mostrou o retrato que
criaram da filha dela, mais de 20 anos depois do desaparecimento.
Primeiro, essa mãe me mostrou a foto que carregava da menina, em
suas buscas: os olhos bem arredondados, cabelos cheios, aquele rosto
ainda infantil em uma pré-adolescente. Depois, ela me mostrou a
simulação: a face adulta, bem mais velha e ríspida, de olhos
duros, cabelos reduzidos, maxilar pontiagudo, completamente
diferente. Foi um choque para mim, naquele momento, imagina para os
pais. Perguntei como foi receber aquele retrato, ela me contou ter
tido uma depressão comparável somente à época do desaparecimento.
Porque é perder a filha mais uma vez, sabe? É ter sequestrada
aquela imagem que se tinha dela, ser confrontada com a realidade de
que aquela filha não existe mais, o que talvez ainda exista é essa
pessoa irreconhecível, uma estranha. O que é seu filho, quando está
transformado em um estranho? Essa se tornou uma questão fundamental
de Rebentar.
CROQUI
- Gustavo
e Ângela permanecem juntos após o desaparecimento do filho.
Conte-nos um pouco da sua escolha de, neste caso, ir contra as
estatísticas, que apontam que 80% dos casais se separam quando
ocorre um desaparecimento de filhos e filhas. Otávio era um
personagem fundamental para a trama ou houve outras motivações por
de trás da sua escolha?
RAFAEL
GALLO – Além
de o Otávio ser fundamental em alguns momentos, eu queria que a
Ângela tivesse um universo ao redor dela, o qual, afora o filho
ausente, estivesse funcionando de forma razoável. Não queria uma
vida devastada, com casamento arruinado, solidão, parentes
afastados, crises financeiras, etc. Porque, assim, ela teria um monte
de problemas pra resolver, não somente o filho. Queria que ela fosse
essa personagem que tem tudo à sua espera, mas que precisa sair de
dentro desse lugar escuro onde está. A possibilidade de restauração
está bem ali, embora pareça muito distante. Muitas vezes, pessoas e
personagens são assim: de todas as peças do grande quebra-cabeças
da vida, a atenção fica toda naquela que falta, os sentimentos mais
intensos vêm da lacuna. Claro que no caso de uma mãe de filho
desaparecido isso é absolutamente compreensível, até esperado, mas
eu queria ter esse caminho possível de volta. E o Otávio, nisso
também, é fundamental.
CROQUI
– Conte-nos um pouco sobre
como foi a sua transição do conto para o romance. Resumidamente, o
que para você foi permanência e o que surgiu de novos elementos na
sua escrita por conta da mudança de gênero literário?
RAFAEL
GALLO – Eu
acho que a diferença principal – e assustadora, a princípio (rs)
– foi a medida das coisas, o tamanho dos gestos narrativos. Em um
conto, você sabe que a história não vai chegar muito longe daquele
ponto de partida; no romance, as ramificações vão a se perder de
vista. É difícil se acostumar com isso no começo, habituar-se a
uma escrita que você não chega nem perto de compreender o todo.
Mas, aos poucos, fui me acostumando às novas dimensões das cenas,
cenários e outros aspectos. Mais do que isso, gostei de ter esse
“espaço” para explorar melhor certos elementos da história. Por
exemplo, em um conto eu provavelmente teria de escolher apenas um
“objeto” para simbolizar a paralisia do tempo, relativa à
ausência do filho. Mas no romance eu posso ter vários: o quarto, a
fachada da casa, os porta-retratos, o abandono profissional da
Ângela, o casamento, os outros familiares, etc.
O
que permanece, acho, além de questões estilísticas é aquilo que
falei no começo: o cuidado com o “coração” da história, em
não perdê-lo de vista, não se desgarrar dele, seja ao atravessar
10 páginas ou 400. De certa forma, me parece que o Rebentar
é um pouco como um conto gigante, ele orbita ao redor de um núcleo
muito próximo o tempo todo.
CROQUI
– Quais são as suas
influências literárias mais importantes e o que está lendo
atualmente?
RAFAEL
GALLO – Minhas
influências têm mudado bastante ao longo do tempo. Começaram
principalmente com Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Julio Cortázar
e Guimarães Rosa, passaram por Di Cavalcanti e Tom Jobim, Michael
Haneke e Magritte, Debussy e Chico Buarque, Stanley Kubrick e Noel
Rosa, tantos outros. Hoje, além desses, há muito da literatura
contemporânea, especialmente brasileira e portuguesa. Adriana
Lisboa, João Carrascoza, Maurício de Almeida, Inês Pedrosa, José
Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz,
esses autores têm feito a minha cabeça.
CROQUI
– Está trabalhando em um novo
livro? Caso sim, o que já nos pode adiantar?
RAFAEL
GALLO –
Estou trabalhando em dois, na verdade. Tenho um de contos
praticamente pronto, com as histórias que tenho escrito desde que
publiquei o Réveillon
e outros dias,
em 2012. E estou trabalhando em um romance também. Digo que, se
Rebentar
é o “livro da mãe”, esse próximo é o “livro do pai”. É
outra história, são outros personagens, mas alguns dos temas mais
subterrâneos do Rebentar
estão ali. E quis voltar meus olhos para questões mais tipicamente
masculinas: o analfabetismo afetivo, a cobrança por sucesso e
desempenho no ofício, o autoritarismo, etc.
CROQUI
– Possui projetos literários
para além de um novo livro, bem como palestras, cursos ou eventos
dos quais participara?
RAFAEL
GALLO –
Eu dou oficinas de escrita de vez em quando. Acabei de terminar minha
participação no CLIPE, o Curso Livre de Preparação de Escritores,
da Casa das Rosas, e fiquei impressionado com a qualidade de alguns
dos trabalhos de lá. Pretendo dar mais oficinas em breve, mas ainda
não há datas confirmadas. Esse ano – de crise, Copa e eleições
– está bem parado de eventos, não tenho nenhum em vista, então
estou aproveitando para focar bastante na escrita do meu romance. Sou
bem demorado para escrever, preciso investir muito no tempo de
trabalho.
CROQUI
– O que é literatura para
você?
RAFAEL
GALLO –
Eu oscilo entre a vontade, por um lado, de responder algo grandioso -
como se a literatura salvasse vidas ou fosse um ativismo político
impactante – e, por outro lado, de responder que a literatura é só
mais uma das pequenas partes que formam o grande caos do mundo,
talvez uma das que têm menos peso. E quando essas dúvidas em
relação à literatura assaltam minha cabeça de escritor, volto
sempre a pensar como leitor, que é o lugar das fundações da
literatura para mim. E, enquanto leitor, a literatura foi, para mim,
uma das grandes fontes de formação afetiva e intelectual. Me
apresentou novas possibilidades de se ver o mundo, de perceber que a
vida pode ser muito diferente da que me impunham, pode ter muitas
outras maneiras de se realizar além do meu pequeno e restrito
universo. Acho que isso é a literatura (mas também muitas outras
coisas podem sê-lo, como a música ou o esporte, para alguns): uma
espécie de abertura, como se antes vivêssemos em uma casa fechada,
mas de repente pudéssemos abrir janelas para vislumbrar outros
horizontes, receber outras luzes e brisas, além do ar viciado da
casa fechada. E isso, de certa forma, é fundamental. Se todos os
indivíduos tivessem algo assim, tão potente e transformador, o
coletivo poderia ser diferente.
*Thiago
Scarlata
(1989) é poeta, músico, escritor e editor do Blog
Literário Croqui.
Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e
também nas Revistas Gueto,
Enfermaria
6,
Escamandro,
Mallarmagens,
Monolito,
Avenida
Sul,
Incomunidade,
Janelas
em Rotação,
Poesia
Brasileira Hoje,
O
poema do poeta, Poesia Avulsa,
Literatura&Fechadura,
Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio
Braziliense, Jornal RelevO, além
de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO
SESC DE LITERATURA 2016, vencedor do CONCURSO
MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017 e
da SELEÇÃO PÚBLICA PARA PUBLICAÇÃO - EDITORA URUTAU 2018.
É autor do livro de poesia “Quando
Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo”
(Editora
Multifoco,
2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com