terça-feira, 24 de abril de 2018

Dobres sobre a luz: apogeu e queda da língua


*Por Thiago Scarlata



Dobres sobre a luz (Lumme Editor, 2016) é um livro que veio do futuro (interpretável como “o hoje”). Thiago Ponce de Moraes nos apresenta um livro que poderia muito bem ser um glossário sobre a história da comunicabilidade – onde a literatura, obviamente também está inserida. Há nesta obra elementos que carregam a identidade de eras. Se repentinamente todos os livros do mundo desaparecessem, dobres sobre a luz conseguiria exercer o papel de uma bússola apontando os caminhos ricos e distintos da linguagem.

Em sete seções, o poeta maneja do clássico ao experimental. Como sugere o título, é como se Ponce de Moraes tivesse feito “dobres sobre a luz” e visto bem além, convidando-nos a um salto corajoso para fora dos domínios conhecidos da expressividade. E é inegável, os poemas de dobres sobre a luz têm um brilho diferente: suas formas, técnicas, dicções e experimentações – poemas em QR Code, código morse e binário são alguns desses novos e inventivos elementos presentes na obra e que até mesmo nos fazem buscar recursos tecnológicos para chaveá-los e abri-los à nossa língua comum, uma interatividade que provoca, também, reflexões e questionamento sobre, por exemplo, se há um limite e quais são os novos caminhos da comunicação humana. Portanto, não esperem conforto nessa leitura, pois a proposta aqui é (literalmente) nos fazer sair do lugar-comum, isto é, da experiência convencional que um livro oferta.


Elizabeth Bishop (pág. 43) / @LummeEdiitor2016


Homero (pág. 71) / @LummeEditor2016



Atendo-me, agora, à poesia propriamente dita de Thiago, a marca que fica é a de um canto incendiário. Musicalidade une-se ao místico. Romantismo à máxima abstração. Surrealismo une-se ao épico, exalando uma luz, que é resultado de uma jornada (entendida por vida) composta por várias camadas. Sem esses filtros (desconhecidos por mim), a luminosidade poética de Thiago Ponce de Moraes (essa sim, tive o privilégio de conhecer) não seria a que nos arrebata em dobres sobre a luz. Vejamos pela fresta um pouco dessa luz, exposta em “Um e Três Sonetos” (pág. 21):


Ancoragem

Construo sobre a luz tua morada,
As cinzas que irás lograr tardia.
Construo tua chegada, tua saudade,
A sombra inatural que em ti esculpes.

Construo a farsa, o rosto da amada,
Os simples gestos que irradiam os dias.
Construo sobre os traços da tua culpa
A curva da viragem: a ancoragem

Intuída corpo adentro, à margem
De teu ventre em mênstruo devoluto.
Construo sobre a luz do branco hábito

O rubro hálito desta vigília.
Construo avesso ao viço da estiagem
O teu regresso em torpe balbucio.


Por fim, para além da nossa crítica, o autor gentilmente nos cedeu uma entrevista sobre a sua interpretação da própria obra (finalista do Prêmio Jabuti 2016), palavras esclarecedoras que fornecem mais ferramentas para uma melhor imersão e aproveitamento de sua poesia. Segue abaixo:


CROQUI: O que é “Dobres sobre a luz”?

THIAGO PONCE DE MORAES
Responder a “o que é Dobres sobre a luz”, para além de simplesmente dizer: é um livro de poemas – remonta à própria impropriedade que carrega esta seleção. Digo: dizer o que é este livro, este grupo de poemas, é tanto impróprio quanto impossível, numa medida análoga àquilo que o livro porta: algo que escapa, que não se circunscreve definitivamente, que segue a caminho.

Assim me parece ser porque o livro, da forma como o leio, tende a convergir para a deriva da ilegibilidade última de toda escrita – ilegibilidade inerente à escrita em geral, sim, mas que aqui passa a ser agravada. A impropriedade primeira é justamente esta: uma seleção de poemas que, a princípio, se apresentam diante dos olhos de outrem para serem lidos, mas que, contra o contrato previamente firmado, procuram resistir a essa leitura, flagrando o caráter falho da noção de comunicabilidade (geralmente bem escamoteado pelo uso cotidiano da linguagem). 

O livro, de modo geral, acena para o tensionamento da dualidade escrita-leitura, acena para questões que são para mim caras desde o meu primeiro livro, Imp.; questões que vêm a reboque do problema mais amplo da ilegibilidade que acabo de mencionar. Comparecem, nessa medida, categorias como dizível-indizível, traduzível-intraduzível, comunicável-incomunicável, arcaico-contemporâneo, visível-invisível, audível-inaudível etc. E o lapso dessas dualidades – o que não quer dizer o estabelecimento de dicotomias; ao contrário, trata-se de certo adensamento da variação de matizes de um extremo a outro.

Para além disso, a experimentação é algo a que sempre tentei submeter a escrita que se propôs em meus trabalhos. Gosto de pensar a ideia de experiência na chave de Lacoue-Labarthe (entre outros), que a aproxima da noção de risco/perigo. E, então, o que está em risco nesse experimento com a palavra é a própria linguagem, seus acordos, seus tratados, seu domínio, sua discursividade. A própria ideia de temporalidade está em risco, deslocada que está de certa corrente atual. É assim que, penso, os poemas lançam a linguagem à deriva – à revelia de seu fascismo: de sua higiene aplanadora, de sua clareza acachapante, de seu extremo autoritarismo semântico etc.

Penso que a poesia deva se manter em devir, deva se manter em algum lugar instável, precário, a caminho. Dessa forma, a poesia pode se colocar contra, justamente, a autoridade da escrita em geral, passando a fragilizar e a surpreender a qualidade arbitrária da linguagem, sua absoluta farsa, seu teatro do absurdo. A poesia sabe que a essência do diálogo é a divergência, o não prontamente identificável, a coesão e a convivência de contrários, de impossíveis. E Dobres sobre a luz, a meu ver, tenta atravessar e propor esse caminho.

Outra característica forte dos poemas desse livro, que também me move através dos anos, é a necessidade de o poema se erguer como uma peça sonora antes mesmo de fazer sentido (se é que o fará, no sentido da poiesis; se é que o seu sentido não é ser esse lugar em que o nada possa acontecer – esse nada que é tudo: o mito, a la Pessoa). Como no fiat lux, há precedência sonora ante aquilo que vem e não se deixa ver vir. Esse estatuto elevado que tento garantir para o traço sonoro (o ritmo, a cadência, o acento etc.) também se respalda no tensionamento do sentido e do legível que procuro anunciar.

Penso, enfim, mas não conclusivamente, o poema como uma casa remota e insuficiente, em ruínas, a que visitar. Um lugar de ter de onde se ir, citando o mestre Max Martins. Um lugar que atravessa aquele que lê ao passo que é também a travessia que o leitor faz. E continua.










Thiago Ponce de Moraes (Rio de Janeiro, 1986–) é poeta, tradutor e professor. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006), De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010) e Dobres sobre a luz (Lumme Editor, 2016, livro finalista do Prêmio Jabuti), bem como a plaquete bilíngue Glory Box (Carnaval Press, 2016), na tradução do poeta britânico Rob Packer, e a plaquete uma fotografia (Leonella, 2017). Na área de ensaios, publicou Remos e Versões (Multifoco, 2012) e Agora sim... talvez seja eu e mais alguém: específica experiência da leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA, 2014). Possui doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com estudo sobre a obra de Paul Celan. Participou, entre outros, do 31º Festival Internacional de Poesia de Tróis-Rivières (Canadá), do XX Encontro Internacional de Escritores (México) e do 55º Struga Poetry Evenings (Macedônia), o mais antigo encontro internacional de poetas. Publica leituras de poesia contemporânea semanalmente na Poemateca (www.instagram.com/poemateca) e publica de maneira esparsa no blog Outra Respiração (www.outrarespiracao.wordpress.com).





*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).

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