*Por
Thiago Scarlata
A
coloquialidade de Diego
Grando
é seu instrumento para a formatação de uma obra (desde
Desencantado
Carrossel
e passando por Sétima
do Singular)
que ocorre num constante agora. O cotidiano pulsante das cidades, com
seus ascensoristas, caixas de supermercado, a operadora de
telemarketing, o íntimo máximo do banheiro de casa - e todas as
sutilezas sussurradas aparentemente aleatórias que deixamos escorrer
pelo ralo -, o não-fumante, todos esses pequenos rituais como o de
acender um fósforo ou mesmo o ato de escrever um poema (e o que isso
implica) é alvo de Grando.
Então,
após um hiato de quase 10 anos, nos chega Spoilers
(Confraria
do Vento, 2018),
um livro em que fica evidente um mergulho mais profundo do autor em
relação às suas últimas publicações. Aqui, temos o melhor de
Grando (pontos já mencionados no parágrafo anterior) aliado a um
novo ingrediente: o tempo.
Nessa
nova obra, há tanto uma exploração da memória, quanto uma antiga
marca de Grando: o trato com elementos da contemporaneidade. Em
relação a este último apontamento, se compararmos seu penúltimo
livro (Sétima
do Singular,
Não Editora, 2009)
com Spoilers, teremos o retrato de duas épocas, o que é um ponto
interessantíssimo para quem acompana a trajetória do escritor,
doando-nos, também, sua forte substância retratista.
O
livro é dividido em duas partes: "Passado Pressentido" e
"Presente Prorrogado". O primeiro, mais ligado,
naturalmente, à memórias, sejam familiares, de infância, de
lugares, enfim, uma ode revisitada, uma rememoração poética do
hoje homem Diego Grando, que nos brinda com sua bagagem de vida e de
arte - e o poeta sabe como poucos mesclá-las e traduzi-las ao papel.
O segundo, é um almanaque da pós-modernidade. Como já dito, uma
das matérias de Grando é o hoje. O textão da rede social, a função
"soneca" do smarthphone,
a praça de alimentação de um shopping,
também um fóssil, uma lâmpada e um mclance feliz. Entretando, cabe
alertar: não esperem descrições humoradas, literalidades e
associações de cunho meramente crônico. Em Grando nada é atoa. Há
questionamento, sarcasmo e crítica. O poeta faz o que se espera dos
grandes: sugere.
Melhor
do que minhas palavras para exemplificar, são os dois poemas do
livro que selecionei e que agora compartilho abaixo, e, em seguida,
uma entrevista que fiz com o autor:
MEMORABIBLIA
III
Afora
os que estavam nos dedos
pouco
soubera dos números
e
por que se contasse com eles
a
avó que viveu menos.
As
letras que - sublinhadas
com
a ponta da unha - se liam
trazendo
tendência ao tédio
ficaram
pra tias, pras tias.
Viver
foi, afinal, ir vivendo
sem
fórmulas ou aforismos.
A
avó que viveu menos
terminou
- como
disseram
- confusa
mas
isso não vinha ao caso.
Vivem
menos e casou
com
o avô que viveu mais:
inversamente
proporcionais
na
mesma gaveta do cemitério.
***
PRAÇA
DE ALIMENTAÇÃO
A
vida - esse burrito de argamassa
que
a gente vem comer com fome e pressa
e
para digerir leva um bocado
O
tempo - esse temaki de água-viva
um
cone algodoado feito luva
que
a mão humana nunca é que se livra
O
ser - essa salada contingente
de
folhas frutas bolos
chochos
de esperanã
A
lógica - esse hambúrguer carbonato
de
sódio lítio glúten glutamato
e
uma porção pequena de poliestireno
A
moral - essa pasta nada à moda
escalopes
ao molho madeira e talheres
pretos
plásticos embalados
A
razão - essa torre de chopp
esse
xarope utópico
gaseificado
A
ética - esse suco descartável
polpa
de água batida
em
copo ecológico certificado
A
fé - esse café de águas passadas
por
cápsulas viçosas de alumínio
aos
pingos espartanos de aspartame
A
metafísica - essa paleta intraduzível
palito
enobrecido
entorpecido
de recheio
O
cosmo - esse amontoado de pequenos sóis
com
tampo de granito onde orbitamos
acenando
ansiosos para que nos vejam
CROQUI
– Conte-nos um pouco sobre como foi escrever um livro como parte
de uma tese. Como isso se deu?
DIEGO
GRANDO
- Do ponto de vista acadêmico – ou burocrático, como preferir –,
dá pra dizer que foi tranquilo, uma vez que, nas duas universidades
mais importantes de Porto Alegre (a UFRGS e a PUCRS), já existe um
espaço legitimado para a Escrita Criativa, ou seja, para a produção
de dissertações e teses que se estruturem a partir de uma produção
ficcional/poética. Eu, inclusive, já tinha passado por isso: meu
livro anterior, Sétima
do singular
(Não Editora, 2012), tinha sido parte da minha dissertação de
mestrado, na PUCRS. Então, não era uma novidade pra mim propor um
trabalho desse tipo – afora, claro, a novidade inevitável que é
passar por todo o processo de fazer uma tese, o tempo envolvido, as
exigências (pessoais e institucionais), essas coisas – e também
não era uma novidade na UFRGS, muito embora meu trabalho tenha sido
o primeiro em poesia – e, evidentemente, eu era um corpo estranho
entre meus colegas, afinal, era sempre embaraçoso ter que responder
à pergunta: sobre que é o teu trabalho?
As
questões que podem surgir daí, me parece, giram em torno do porquê
e do como isso funciona, do ponto de vista prático: tive aulas de
criação poética? O que se ensina/aprende nesse tipo de formação?
Além dos poemas, o que mais constitui o trabalho? Como se avalia
esse tipo de trabalho?
Pra
não me alongar tanto: cursei as disciplinas do currículo
tradicional do Pós em Letras da UFRGS, entre elas havia uma (mas
puramente teórica) sobre processos de criação literária, e uma,
em formato mezzo-oficina, de poesia brasileira. Ou seja: a criação
poética era responsabilidade minha, não havia ninguém solicitando
que eu escrevesse tal ou tal coisa, ou de tal ou tal jeito. A Márcia
Ivana, minha orientadora, sempre me deixou muito livre pra fazer as
coisas do meu jeito, isto é, não só escrever os poemas, mas dar
corpo ao restante da tese. No caso, fiz uma pesquisa extensa, bem
mais extensa do que eu tinha planejado inicialmente, sobre a presença
do tempo na reflexão sobre a criação literária, partindo lá das
Artes Poéticas e Retóricas da Antiguidade, passando por prefácios,
cartas, depoimentos de poetas sobre o próprio processo criativo e
chegando na Crítica Genética. Eu analisei, daí, a função – ou
melhor, as funções, foi o que vim a descobrir e sistematizar – do
tempo na criação poética. Além disso, fiz dois ensaios sobre
poetas contemporâneos (Marco de Menezes e Angélica Freitas) e, ao
final, uma espécie de depoimento sobre o processo de escrita do
livro, e do livro dentro da tese, ou seja, mais ou menos o que estou
fazendo aqui.
O
legal disso tudo é que o orientador e a banca atuam, mais do que
como avaliadores, como “primeiros leitores” da obra, isto é, eu
tive a grande chance de ter, além da Márcia Ivana, minha
orientadora, o Altair Martins, o Antônio Sanseverino e o Alckmar
Santos lendo e comentando meus poemas, fazendo sugestões, etc. Nesse
sentido, a entrega da tese é o final de uma coisa, mas não de tudo.
Aí, depois da defesa vem o trabalho normal (e difícil) de
publicação: o livro se descola da tese e vira um volume isolado,
tem que achar editora, revisar e mudar mais umas tantas vezes, até
que ele fique pronto. Como qualquer livro.
CROQUI
–
Sabemos que não gosta muito de falar sobre uma “ideia geral” da
obra, pois, nas suas palavras, “o grande barato está em como cada
um vai interpretar e lidar com o livro”. Ainda assim, poderia nos
ceder alguns pontos de norteio sobre Spoilers ?
DIEGO
GRANDO
-
Bom, falando sobre o que me parece mais óbvio – partindo do título
e da divisão do livro em duas partes, “Passado pressentido” e
“Presente prorrogado” –, o núcleo está na questão do tempo
(não por acaso, é o tópico que abordei, só que de outro ângulo,
na parte teórica da tese). Minha vontade não era falar do
tempo, mas com
o tempo, colocar as coisas
em função
do tempo, apesar de eu não saber explicar muito bem o que isso quer
dizer. Enfim, tomando essa premissa como verdadeira, o tempo passa a
se desdobrar em várias formas: memória, família, envelhecimento, o
aqui e o agora, futuro, morte. Tanto é que eu passei a ler coisas
bem variadas sobre tempo, da filosofia à física, Santo Agostinho,
Stephen Hawking, Ricœur, Norbert Elias, Étienne Klein, Heidegger,
Agamben, por aí vai, e acho que isso acabou se refletindo no livro.
Nessa
de falar com
o tempo, foi ficando mais evidente pra mim a necessidade de trabalhar
com poemas um pouco mais longos (em relação ao que eu já fazia),
de buscar nessa dilatação do tempo pela linguagem algo das
experiências que eu queria provocar/produzir. Paralelamente a isso,
não me interessava puramente “olhar para trás”, eu queria era
falar do presente, então, de certa maneira, eu precisava arrancar o
passado do lugar dele e trazê-lo para o agora. Aí fui me dando
conta que, pra fazer o passado virar presente, seria preciso também
fazer o movimento inverso, uma espécie de contrapeso: transformar o
presente numa forma de passado. Assim, tudo ganharia essa cara mais
opaca do presente, que é o fato de nunca sabermos ao certo o que
está (nos) acontecendo, essa impossibilidade de distinguir relações
de causa e consequência. Tudo meio que vira spoiler, mas de uma
narrativa que é, no fim das contas, desconhecida, inacessível. O
presente é puro spoiler, mesmo que a gente só venha a perceber
depois, quando já deixou de ser presente.
CROQUI
–
Porque um intervalo tão espaçado entre seus dois últimos livros?
Isso está ligado a novas práticas no seu processo de maturação da
escrita, ou foi algo mais ligado à correria do cotidiano?
DIEGO
GRANDO
-
São vários motivos, e os dois apresentados na pergunta são
verdadeiros. Começando pelo primeiro: escrever sempre foi algo
demorado pra mim. Não sou alguém inspirado, intuitivo, iluminado,
não tiro poemas da cartola. Meu primeiro livro, Desencantado
carrossel,
com toda aquela cara de tudo-o-que-eu-fiz-até-aqui que acontece
muito num primeiro livro, levou seis anos pra ser escrito. Aliás,
quando ele saiu, em 2008, eu já estava com o segundo encaminhado,
porque fazia parte da minha dissertação de mestrado, defendida no
mesmo 2008. Mas aí fui reescrevendo, mudei poemas, troquei o título,
e o Sétima
do singular
saiu só em 2012, depois que eu já tinha publicado aquele
livretinho, 25
Rua do Templo / Palavra Paris,
em 2010, escrito basicamente no ano anterior. Ou seja, não há
linearidade entre o que escrevi e publiquei. Dá pra entender por que
fui me debruçar sobre o tempo? Nesse sentido, Spoilers
vem colocar uma certa ordem nessa bagunça (mas é uma bagunça
saudável, e a ordem é algo bem fácil de se perder).
Outro
fator pra essa distância temporal é o fato de que eu já não tinha
a pressa dos anteriores: do primeiro, porque é o primeiro, a
existência enquanto autor está meio condicionada a ele; do segundo,
porque parecia preciso confirmar aquela existência. A partir daí,
passou o desejo de publicar. Não o desejo, mas a urgência, e acho
que fazer o Spoilers
foi viver isso, e de vários ângulos.
Mas
tem o lado da correria também, e de tudo o que vem com ela. O fato é
que, de 2011 pra cá, passei a viver uma exposição que era então
desconhecida pra mim, por vários motivos. Primeiro, comecei a dar
aula em cursinho, uma rede grande, dessas que se dá aula com
microfone e a turma na verdade é uma grande plateia de cento e
tantas, duzentas pessoas. Fiz isso até 2015. Além disso, a
publicação do Sétima
do singular,
em 2012, me deu uma certa projeção por aqui, e logo na sequência,
e muito em função do livro, eu comecei a fazer rádio, sem nenhuma
ideia de como se fazia isso: tive um programa na Mínima, uma rádio
web, o Mosaico Magazine, por uns sete meses, junto com um amigo, o
Fábio D’Ávila. Era sobre literatura, mas não só. Depois, passei
a participar do programa da Katia Suman (primeiro na rádio Ipanema,
depois na Rádio Elétrica, onde continuo até hoje), falando
semanalmente sobre qualquer coisa (embora a discussão sobre política
de drogas e regulamentação da maconha seja a que mais me mobilize),
é um programa de conversa chamado Talk Radio. E, logo mais, comecei
a substituir a Claudia Tajes no Sarau Elétrico, até que ela saiu (e
eu entrei) em definitivo, ali pelo final de 2013. Em resumo: descobri
uma faceta pública que eu não tinha e não imaginava pra mim, e
isso me impactou muito. Fui me dando conta de que, por motivos
diversos, eu tava falando em microfone de segunda a sexta (às vezes
com reprises aos sábados), e aí o que se tornou urgente foi o
silêncio, foi sair de cena o máximo possível em todo o resto do
tempo.
É
claro que isso tudo não está diretamente no livro, mas talvez
apareça de alguma forma. E se não aparecer, pouco importa, o fato é
que condicionou boa parte dele.
CROQUI
–
Sabemos que você é um grande agitador cultural em Porto Alegre,
frequentando e organizando saraus, ministrando cursos literários,
etc. Fale-nos um pouco sobre seus projetos para além do livro em si.
DIEGO
GRANDO -
Essa é boa! Não consigo me ver no rótulo de “agitador cultural”.
Claro, faço o Sarau Elétrico, que tem história e reconhecimento
(começou em 1999) e é um evento semanal, além de participar,
sempre que me convidam, de eventos literários. Mas agitador cultural
eu acho que não sou, essas coisas simplesmente vão acontecendo, não
sei lidar muito bem com elas.
O
fato é que eu também sou professor, e cada vez mais tenho entrado
nessa militância de ensinar literatura, dar oficinas de poesia,
fazer essa mediação. Hoje estou na PUCRS, faço um pós-doutorado,
tenho um projeto de pesquisa sobre ensino de poesia e criação
literária, tenho um grupo de estudos, o Reservatório de
Experiências Poéticas, estou organizando eventos, palestras,
participando de eventos, bancas, dando palestras. Então, todas as
coisas estão meio que convergindo: escrever, dar oficinas de
escrita, aulas de literatura, refletir sobre o ensino, buscar formas
alternativas de ensino e, principalmente, ler. Eu vivo de literatura,
vivo de poesia, mas num sentido amplo: ser poeta é uma parte (a
menos rentável, aliás, e a mais importante) do todo.
CROQUI
–
Quais são suas principais influências literárias e o que está
lendo atualmente?
DIEGO
GRANDO
- Poxa, falar só das influências literárias é deixar boa parte do
que me influencia de fora: Gessinger, Escher, números primos,
psicodelia, o disco do Chico Anísio de 75, o do Fagner de 76,
cultura canábica, ciência aleatória, etc. Fica o registro.
Bom,
seria injusto não começar com o Drummond, embora hoje eu já me
sinta “independente” dele. O Concretismo certamente me formou.
Álvaro de Campos, Baudelaire, Ginsberg e Ferlinghetti. Apollinaire e
Blaise Cendrars. Gullar. O João Cabral passou a ocupar um lugar
importante nos últimos anos, foi quem mais reli e estudei. Não sei
diferenciar bem “influência” de “gosto muito”. Proust. Os
ensaios do Auden, os textos teóricos do Pound. Bolaño, Knausgård e
Foster Wallace. A poesia do Gonçalo M. Tavares. Glauco Mattoso,
Paulo Henriques Britto. Mais recentemente, Szymborska. Me sinto um
irmão mais novo: Marco de Menezes, Samarone Lima, Marcelo
Montenegro.
CROQUI
– Já há novas datas e locais para o lançamento do Spoilers? Caso
haja, quais?
DIEGO
GRANDO
- Rio e São Paulo, provavelmente na primeira quinzena de julho.
Talvez Recife no segundo semestre.
Foto: Theo Tajes |
Diego Grando Nasceu em Porto Alegre, em 1981. Publicou “Desencantado carrossel”, “Sétima do sigular”, e o in-fólio “25 Rua do Templo / Palavra Paris”. Fas parte do Sarau Elétrico, tradicional evento de literatura que acontece em Porto Alegre. “Spoilers” foi desenvolvido como parte de sua tese de doutorado em Letras, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas Gueto, Enfermaria 6, Escamandro, Mallarmagens, Monolito, Avenida Sul, Incomunidade, Janelas em Rotação, Poesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia Avulsa, Literatura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com
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