domingo, 13 de maio de 2018

Spoilers - Diego Grando


*Por Thiago Scarlata


A coloquialidade de Diego Grando é seu instrumento para a formatação de uma obra (desde Desencantado Carrossel e passando por Sétima do Singular) que ocorre num constante agora. O cotidiano pulsante das cidades, com seus ascensoristas, caixas de supermercado, a operadora de telemarketing, o íntimo máximo do banheiro de casa - e todas as sutilezas sussurradas aparentemente aleatórias que deixamos escorrer pelo ralo -, o não-fumante, todos esses pequenos rituais como o de acender um fósforo ou mesmo o ato de escrever um poema (e o que isso implica) é alvo de Grando.
Então, após um hiato de quase 10 anos, nos chega Spoilers (Confraria do Vento, 2018), um livro em que fica evidente um mergulho mais profundo do autor em relação às suas últimas publicações. Aqui, temos o melhor de Grando (pontos já mencionados no parágrafo anterior) aliado a um novo ingrediente: o tempo.
Nessa nova obra, há tanto uma exploração da memória, quanto uma antiga marca de Grando: o trato com elementos da contemporaneidade. Em relação a este último apontamento, se compararmos seu penúltimo livro (Sétima do Singular, Não Editora, 2009) com Spoilers, teremos o retrato de duas épocas, o que é um ponto interessantíssimo para quem acompana a trajetória do escritor, doando-nos, também, sua forte substância retratista.
O livro é dividido em duas partes: "Passado Pressentido" e "Presente Prorrogado". O primeiro, mais ligado, naturalmente, à memórias, sejam familiares, de infância, de lugares, enfim, uma ode revisitada, uma rememoração poética do hoje homem Diego Grando, que nos brinda com sua bagagem de vida e de arte - e o poeta sabe como poucos mesclá-las e traduzi-las ao papel. O segundo, é um almanaque da pós-modernidade. Como já dito, uma das matérias de Grando é o hoje. O textão da rede social, a função "soneca" do smarthphone, a praça de alimentação de um shopping, também um fóssil, uma lâmpada e um mclance feliz. Entretando, cabe alertar: não esperem descrições humoradas, literalidades e associações de cunho meramente crônico. Em Grando nada é atoa. Há questionamento, sarcasmo e crítica. O poeta faz o que se espera dos grandes: sugere.
Melhor do que minhas palavras para exemplificar, são os dois poemas do livro que selecionei e que agora compartilho abaixo, e, em seguida, uma entrevista que fiz com o autor:


MEMORABIBLIA III


Afora os que estavam nos dedos
pouco soubera dos números
e por que se contasse com eles
a avó que viveu menos.


As letras que - sublinhadas
com a ponta da unha - se liam
trazendo tendência ao tédio
ficaram pra tias, pras tias.


Viver foi, afinal, ir vivendo
sem fórmulas ou aforismos.


A avó que viveu menos
terminou - como
disseram - confusa
mas isso não vinha ao caso.


Vivem menos e casou
com o avô que viveu mais:
inversamente proporcionais
na mesma gaveta do cemitério.


                   ***



PRAÇA DE ALIMENTAÇÃO


A vida - esse burrito de argamassa
que a gente vem comer com fome e pressa
e para digerir leva um bocado


O tempo - esse temaki de água-viva
um cone algodoado feito luva
que a mão humana nunca é que se livra


O ser - essa salada contingente
de folhas frutas bolos
chochos de esperanã


A lógica - esse hambúrguer carbonato
de sódio lítio glúten glutamato
e uma porção pequena de poliestireno


A moral - essa pasta nada à moda
escalopes ao molho madeira e talheres
pretos plásticos embalados


A razão - essa torre de chopp
esse xarope utópico
gaseificado


A ética - esse suco descartável
polpa de água batida
em copo ecológico certificado


A fé - esse café de águas passadas
por cápsulas viçosas de alumínio
aos pingos espartanos de aspartame


A metafísica - essa paleta intraduzível
palito enobrecido
entorpecido de recheio


O cosmo - esse amontoado de pequenos sóis
com tampo de granito onde orbitamos
acenando ansiosos para que nos vejam


CROQUI – Conte-nos um pouco sobre como foi escrever um livro como parte de uma tese. Como isso se deu?
DIEGO GRANDO - Do ponto de vista acadêmico – ou burocrático, como preferir –, dá pra dizer que foi tranquilo, uma vez que, nas duas universidades mais importantes de Porto Alegre (a UFRGS e a PUCRS), já existe um espaço legitimado para a Escrita Criativa, ou seja, para a produção de dissertações e teses que se estruturem a partir de uma produção ficcional/poética. Eu, inclusive, já tinha passado por isso: meu livro anterior, Sétima do singular (Não Editora, 2012), tinha sido parte da minha dissertação de mestrado, na PUCRS. Então, não era uma novidade pra mim propor um trabalho desse tipo – afora, claro, a novidade inevitável que é passar por todo o processo de fazer uma tese, o tempo envolvido, as exigências (pessoais e institucionais), essas coisas – e também não era uma novidade na UFRGS, muito embora meu trabalho tenha sido o primeiro em poesia – e, evidentemente, eu era um corpo estranho entre meus colegas, afinal, era sempre embaraçoso ter que responder à pergunta: sobre que é o teu trabalho?
As questões que podem surgir daí, me parece, giram em torno do porquê e do como isso funciona, do ponto de vista prático: tive aulas de criação poética? O que se ensina/aprende nesse tipo de formação? Além dos poemas, o que mais constitui o trabalho? Como se avalia esse tipo de trabalho?
Pra não me alongar tanto: cursei as disciplinas do currículo tradicional do Pós em Letras da UFRGS, entre elas havia uma (mas puramente teórica) sobre processos de criação literária, e uma, em formato mezzo-oficina, de poesia brasileira. Ou seja: a criação poética era responsabilidade minha, não havia ninguém solicitando que eu escrevesse tal ou tal coisa, ou de tal ou tal jeito. A Márcia Ivana, minha orientadora, sempre me deixou muito livre pra fazer as coisas do meu jeito, isto é, não só escrever os poemas, mas dar corpo ao restante da tese. No caso, fiz uma pesquisa extensa, bem mais extensa do que eu tinha planejado inicialmente, sobre a presença do tempo na reflexão sobre a criação literária, partindo lá das Artes Poéticas e Retóricas da Antiguidade, passando por prefácios, cartas, depoimentos de poetas sobre o próprio processo criativo e chegando na Crítica Genética. Eu analisei, daí, a função – ou melhor, as funções, foi o que vim a descobrir e sistematizar – do tempo na criação poética. Além disso, fiz dois ensaios sobre poetas contemporâneos (Marco de Menezes e Angélica Freitas) e, ao final, uma espécie de depoimento sobre o processo de escrita do livro, e do livro dentro da tese, ou seja, mais ou menos o que estou fazendo aqui.
O legal disso tudo é que o orientador e a banca atuam, mais do que como avaliadores, como “primeiros leitores” da obra, isto é, eu tive a grande chance de ter, além da Márcia Ivana, minha orientadora, o Altair Martins, o Antônio Sanseverino e o Alckmar Santos lendo e comentando meus poemas, fazendo sugestões, etc. Nesse sentido, a entrega da tese é o final de uma coisa, mas não de tudo. Aí, depois da defesa vem o trabalho normal (e difícil) de publicação: o livro se descola da tese e vira um volume isolado, tem que achar editora, revisar e mudar mais umas tantas vezes, até que ele fique pronto. Como qualquer livro.

CROQUI – Sabemos que não gosta muito de falar sobre uma “ideia geral” da obra, pois, nas suas palavras, “o grande barato está em como cada um vai interpretar e lidar com o livro”. Ainda assim, poderia nos ceder alguns pontos de norteio sobre Spoilers ?
DIEGO GRANDO - Bom, falando sobre o que me parece mais óbvio – partindo do título e da divisão do livro em duas partes, “Passado pressentido” e “Presente prorrogado” –, o núcleo está na questão do tempo (não por acaso, é o tópico que abordei, só que de outro ângulo, na parte teórica da tese). Minha vontade não era falar do tempo, mas com o tempo, colocar as coisas em função do tempo, apesar de eu não saber explicar muito bem o que isso quer dizer. Enfim, tomando essa premissa como verdadeira, o tempo passa a se desdobrar em várias formas: memória, família, envelhecimento, o aqui e o agora, futuro, morte. Tanto é que eu passei a ler coisas bem variadas sobre tempo, da filosofia à física, Santo Agostinho, Stephen Hawking, Ricœur, Norbert Elias, Étienne Klein, Heidegger, Agamben, por aí vai, e acho que isso acabou se refletindo no livro.
Nessa de falar com o tempo, foi ficando mais evidente pra mim a necessidade de trabalhar com poemas um pouco mais longos (em relação ao que eu já fazia), de buscar nessa dilatação do tempo pela linguagem algo das experiências que eu queria provocar/produzir. Paralelamente a isso, não me interessava puramente “olhar para trás”, eu queria era falar do presente, então, de certa maneira, eu precisava arrancar o passado do lugar dele e trazê-lo para o agora. Aí fui me dando conta que, pra fazer o passado virar presente, seria preciso também fazer o movimento inverso, uma espécie de contrapeso: transformar o presente numa forma de passado. Assim, tudo ganharia essa cara mais opaca do presente, que é o fato de nunca sabermos ao certo o que está (nos) acontecendo, essa impossibilidade de distinguir relações de causa e consequência. Tudo meio que vira spoiler, mas de uma narrativa que é, no fim das contas, desconhecida, inacessível. O presente é puro spoiler, mesmo que a gente só venha a perceber depois, quando já deixou de ser presente.

CROQUI – Porque um intervalo tão espaçado entre seus dois últimos livros? Isso está ligado a novas práticas no seu processo de maturação da escrita, ou foi algo mais ligado à correria do cotidiano?
DIEGO GRANDO - São vários motivos, e os dois apresentados na pergunta são verdadeiros. Começando pelo primeiro: escrever sempre foi algo demorado pra mim. Não sou alguém inspirado, intuitivo, iluminado, não tiro poemas da cartola. Meu primeiro livro, Desencantado carrossel, com toda aquela cara de tudo-o-que-eu-fiz-até-aqui que acontece muito num primeiro livro, levou seis anos pra ser escrito. Aliás, quando ele saiu, em 2008, eu já estava com o segundo encaminhado, porque fazia parte da minha dissertação de mestrado, defendida no mesmo 2008. Mas aí fui reescrevendo, mudei poemas, troquei o título, e o Sétima do singular saiu só em 2012, depois que eu já tinha publicado aquele livretinho, 25 Rua do Templo / Palavra Paris, em 2010, escrito basicamente no ano anterior. Ou seja, não há linearidade entre o que escrevi e publiquei. Dá pra entender por que fui me debruçar sobre o tempo? Nesse sentido, Spoilers vem colocar uma certa ordem nessa bagunça (mas é uma bagunça saudável, e a ordem é algo bem fácil de se perder).
Outro fator pra essa distância temporal é o fato de que eu já não tinha a pressa dos anteriores: do primeiro, porque é o primeiro, a existência enquanto autor está meio condicionada a ele; do segundo, porque parecia preciso confirmar aquela existência. A partir daí, passou o desejo de publicar. Não o desejo, mas a urgência, e acho que fazer o Spoilers foi viver isso, e de vários ângulos.
Mas tem o lado da correria também, e de tudo o que vem com ela. O fato é que, de 2011 pra cá, passei a viver uma exposição que era então desconhecida pra mim, por vários motivos. Primeiro, comecei a dar aula em cursinho, uma rede grande, dessas que se dá aula com microfone e a turma na verdade é uma grande plateia de cento e tantas, duzentas pessoas. Fiz isso até 2015. Além disso, a publicação do Sétima do singular, em 2012, me deu uma certa projeção por aqui, e logo na sequência, e muito em função do livro, eu comecei a fazer rádio, sem nenhuma ideia de como se fazia isso: tive um programa na Mínima, uma rádio web, o Mosaico Magazine, por uns sete meses, junto com um amigo, o Fábio D’Ávila. Era sobre literatura, mas não só. Depois, passei a participar do programa da Katia Suman (primeiro na rádio Ipanema, depois na Rádio Elétrica, onde continuo até hoje), falando semanalmente sobre qualquer coisa (embora a discussão sobre política de drogas e regulamentação da maconha seja a que mais me mobilize), é um programa de conversa chamado Talk Radio. E, logo mais, comecei a substituir a Claudia Tajes no Sarau Elétrico, até que ela saiu (e eu entrei) em definitivo, ali pelo final de 2013. Em resumo: descobri uma faceta pública que eu não tinha e não imaginava pra mim, e isso me impactou muito. Fui me dando conta de que, por motivos diversos, eu tava falando em microfone de segunda a sexta (às vezes com reprises aos sábados), e aí o que se tornou urgente foi o silêncio, foi sair de cena o máximo possível em todo o resto do tempo.
É claro que isso tudo não está diretamente no livro, mas talvez apareça de alguma forma. E se não aparecer, pouco importa, o fato é que condicionou boa parte dele.

CROQUI – Sabemos que você é um grande agitador cultural em Porto Alegre, frequentando e organizando saraus, ministrando cursos literários, etc. Fale-nos um pouco sobre seus projetos para além do livro em si.
DIEGO GRANDO - Essa é boa! Não consigo me ver no rótulo de “agitador cultural”. Claro, faço o Sarau Elétrico, que tem história e reconhecimento (começou em 1999) e é um evento semanal, além de participar, sempre que me convidam, de eventos literários. Mas agitador cultural eu acho que não sou, essas coisas simplesmente vão acontecendo, não sei lidar muito bem com elas.
O fato é que eu também sou professor, e cada vez mais tenho entrado nessa militância de ensinar literatura, dar oficinas de poesia, fazer essa mediação. Hoje estou na PUCRS, faço um pós-doutorado, tenho um projeto de pesquisa sobre ensino de poesia e criação literária, tenho um grupo de estudos, o Reservatório de Experiências Poéticas, estou organizando eventos, palestras, participando de eventos, bancas, dando palestras. Então, todas as coisas estão meio que convergindo: escrever, dar oficinas de escrita, aulas de literatura, refletir sobre o ensino, buscar formas alternativas de ensino e, principalmente, ler. Eu vivo de literatura, vivo de poesia, mas num sentido amplo: ser poeta é uma parte (a menos rentável, aliás, e a mais importante) do todo.

CROQUI – Quais são suas principais influências literárias e o que está lendo atualmente?
DIEGO GRANDO - Poxa, falar só das influências literárias é deixar boa parte do que me influencia de fora: Gessinger, Escher, números primos, psicodelia, o disco do Chico Anísio de 75, o do Fagner de 76, cultura canábica, ciência aleatória, etc. Fica o registro.
Bom, seria injusto não começar com o Drummond, embora hoje eu já me sinta “independente” dele. O Concretismo certamente me formou. Álvaro de Campos, Baudelaire, Ginsberg e Ferlinghetti. Apollinaire e Blaise Cendrars. Gullar. O João Cabral passou a ocupar um lugar importante nos últimos anos, foi quem mais reli e estudei. Não sei diferenciar bem “influência” de “gosto muito”. Proust. Os ensaios do Auden, os textos teóricos do Pound. Bolaño, Knausgård e Foster Wallace. A poesia do Gonçalo M. Tavares. Glauco Mattoso, Paulo Henriques Britto. Mais recentemente, Szymborska. Me sinto um irmão mais novo: Marco de Menezes, Samarone Lima, Marcelo Montenegro.

CROQUI – Já há novas datas e locais para o lançamento do Spoilers? Caso haja, quais?
DIEGO GRANDO - Rio e São Paulo, provavelmente na primeira quinzena de julho. Talvez Recife no segundo semestre.

Foto: Theo Tajes 


Diego Grando Nasceu em Porto Alegre, em 1981. Publicou “Desencantado carrossel”, “Sétima do sigular”, e o in-fólio “25 Rua do Templo / Palavra Paris”. Fas parte do Sarau Elétrico, tradicional evento de literatura que acontece em Porto Alegre. “Spoilers” foi desenvolvido como parte de sua tese de doutorado em Letras, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.







*Thiago Scarlata (1989) é poeta, músico, escritor e criador/editor do Blog Literário Croqui. Teve poemas traduzidos para o espanhol, publicados em antologias e também nas Revistas GuetoEnfermaria 6EscamandroMallarmagensMonolitoAvenida Sul, IncomunidadeJanelas em RotaçãoPoesia Brasileira Hoje, O poema do poeta, Poesia AvulsaLiteratura&Fechadura, Poesia Primata, Vero o Poema, Carlos Zemek, MOTUS, Jornal Correio Braziliense, Jornal RelevO, além de blogs literários. Foi finalista do PRÊMIO SESC DE LITERATURA 2016 e vencedor do CONCURSO MOTUS – MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL 2017. É autor do livro de poesia “Quando Não Olhamos o Relógio, Ele Faz o Que Quer Com o Tempo” (Editora Multifoco, 2017).
E-mail: scarlatatts@gmail.com / croquiliteratura@gmail.com

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